Pensadores Relacionados

A Metafísica da Qualidade é a tentativa de construir uma nova e prática filosofia de vida, baseada na primazia da Qualidade. Ele acredita que é um modelo superior  da corrente de pensamento no qual nossas sociedades ocidentais correntes são baseadas.



Heráclito de Éfeso


Ficheiro:Heraclitus, Johannes Moreelse.jpg

Heráclito de Éfeso (540 a.c - 470 a.c)  foi um filósofo pré-socrático considerado como o "pai da anti-dialética". Indiretamente seu pensamento traça um dialógo com a filosofia oriental de Lao Tse ( Tao Te Ching). A filosofia de Heráclito é o equivalente ocidental para a lei universal cosmológica do Tao.

Juntamente com os contemporâneos como Plotino, considerados como os sofistas, foram alvo de campanha odiosa por Platão, Aristóteles e a escola socrática.. Basicamente porque sua filosofia pretendia debater sobre valores subjetivos, fazendo uma ponte do logos com o mythos, contrário com a premissa socrática de que a razão seria a única via para se alcançar a Verdade.

Os filósofos de Mileto (Tales, Anaximandro, Anaxímenes, entre outros) haviam percebido o dinamismo das mudanças que ocorrem na physis, como o nascimento, o crescimento e a morte, mas não chegaram a problematizar a questão.
Heráclito, inserido no contexto pré-socrático, parte do princípio de que tudo é movimento, e que nada pode permanecer estático - Panta rei ou "tudo flui", "tudo se move", exceto o próprio movimento.


Panta rei os potamós (do grego πάντα ῥεῖ ), traduzido como "Tudo flui como um rio" é o célebre aforisma no qual a tradição filosófica subsequente identificou sinteticamente o pensamento de Heráclito com o tema do devir, em contraposição à filosofia do ser própria de Parmênides.

"Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; por causa da impetuosidade e da velocidade da mutação, esta se dispersa e se recolhe, vem e vai."
Tudo é considerado como um grande fluxo perene no qual nada permanece a mesma coisa pois tudo se transforma e está em contínua mutação. Por isso, Heráclito identifica a forma doSer no Devir pelo qual todas as coisas são sujeitas ao tempo e à sua relativa transformação.
Heráclito sustenta que só a mudança e o movimento são reais, e que a identidade das coisas iguais a si mesmas é ilusória: para Heráclito tudo flui (panta rei).
panta rei é uma consequência de polemos (guerra, conflito), que reina sobre tudo. Em consequência, Heráclito de Éfeso não é o filósofo do "tudo flui" mas do "tudo flui enquanto resultado da tensão contínua dos opostos em luta".

A sua Cosmologia da unidade dos contrários é talvez o aspecto mais original do pensamento filosófico de Heráclito. Semelhante aos opostos complementares (yin-yang) que regem o universo ( Tao ) : A lei secreta do mundo reside na relação de interdependência entre dois conceitos opostos, em luta permanente; mas, ao mesmo tempo, um não pode existir sem o outro. Nada existiria se não existisse, ao mesmo tempo, o seu oposto. 

E é a própria doutrina dos contrários que faz de Heráclito o fundador de uma lógica "antidialética", fundada na lei estética do devir da realidade. Antidialética porque tese e antítese (ser e não ser) são uma síntese contraditória e permanente na realidade, que só assim pode vir a ser, através dos seus dois aspectos existenciais ("no mesmo rio, entramos e não entramos"; "somos e não somos"); oposta à lógica aristotélica porque oposta ao seu princípio da não-contradição e do terceiro excluído.

Para Heráclito, a busca da virtude moral humana, consiste na integração do (desequilibrar-equilibrar) além da dualidade de opostos dinâmicas - a não-dualidade. Assim, a realidade dinâmica era contrária a ideia de existência como fixa, imutável e estática de Parmênides no qual Sócrates adotou. Assim, para Robert Pirsig...a cosmologia de Heráclito foi renegada por Sócrates - causando uma ruptura histórica que causaria danos e mudaria os rumos do pensamento Ocidental.

"A filosofia grega primitiva representou a primeira busca consciente do eterno nos domínios humanos. Até aquela época, o eterno residia no âmbito dos deuses e dos mitos. Agora, porém, os gregos se tornavam cada vez mais neutros com relação ao mundo que os cercava; houve um crescimento do poder de abstração, que lhes permitiu encarar o velho mythos grego não mais como uma verdade revelada, mas como obras de arte criadas pela imaginação. Tal consciência, que jamais existira em nenhuma outra parte do mundo, constituiu todo um novo nível de transcendência para a civilização grega.
Mas o mythos continua; o que destrói o velho mythos tornase o novo mythos; e este novo mythos, transformado em filosofia pelos primeiros pensadores jônicos, assegurou sua permanência de uma nova forma. A permanência não se situava mais apenas nas mãos dos deuses imortais. Encontrava-se também nos Princípios Imortais, dos quais a nossa atual lei da gravidade é um exemplo.
Inicialmente, segundo Tales de Mileto, o Princípio Imortal era a água. Segundo Anaxímenes, era o ar. Os pitagóricos achavam que era o número, sendo os primeiros a encararem o Princípio Imortal como algo abstrato. Heráclito acreditava que era o fogo, e nele introduziu o elemento da transformação. Afirmava Heráclito que o mundo é um eterno conflito, uma tensão entre forças contrárias. Ainda segundo ele, existem o Uno e o Múltiplo; o Uno é a lei universal, imanente a todas as coisas. Anaxágoras foi o primeiro a identificar o Uno como nous, ou seja, a mente.
Parmênides fez notar, pela primeira vez, que o Princípio Imortal, o Uno, a Verdade, nada tem a ver com a aparência e a opinião, e a importância dessa separação e seus efeitos sobre a história subseqüente é incalculável. Foi aqui que a racionalidade clássica, pela primeira vez, se separou de suas origens românticas, afirmou que o Bem e a Verdade não são necessariamente idênticos, e seguiu seu próprio caminho. Anaxágoras e Parmênides influenciaram Sócrates, que concretizou essas idéias.
É fundamental compreender que até aquela época não existia a divisão entre mente e matéria, sujeito e objeto, forma e substância. Tais divisões são apenas invenções dialéticas, adotadas posteriormente. O pensamento contemporâneo às vezes tende a recusarse a crer que tais dicotomias sejam invenções, dizendo: “Bem, os gregos apenas descobriram essas divisões.” Aí a gente pergunta: “E onde é que elas estavam? Mostre!” E o pensamento contemporâneo, meio atrapalhado, resolve que afinal não vale a pena discutir o caso, e continua acreditando que as divisões existiam."  
(ZAMM; págs. 369-370)


Zen Buddhismo




A Metafísica da Qualidade tem como eixo a união, integração dos opostos complementares que regem as leis da vida. A divisão, ruptura entre o racional e o romântico, o objetivo e sujeito, a lógica e a criatividade, o positivismo e o idealismo, a mente e a matéria é a causa principal de todos os conflitos humanos, e por séculos e séculos até os dias atuais são os resquícios deixados pela filosofia clássica ocidental.

Para Pirsig, a Qualidade  reside na união do subject e do object. É o terceiro fator entre os dois lados opostos. Para a visão clássica o logos, o lado objetivo, lógico não se mistura com a subjetividade das artes, do sentimento, do idealismo - mythos. Essa divisão é apenas uma invenção humana - causa direta no conflito entre os dois lados e a perda de qualidade.

"Qualidade! Virtude! Dharma! Era aquilo que os sofistas ensinavam! Não o relativismo ético. Não a “virtude” pristina. Mas a aretê. A superioridade. O dharma! Anterior à Igreja da Razão. Anterior à substância. Anterior até mesmo à dialética. A Qualidade era absoluta. Aqueles primeiros professores do Ocidente estavam ensinando Qualidade, e por meio justamente da retórica. Ele estava agindo certo, o tempo todo." (ZAMM; pág. 374)

Portanto, a filosofia de Pirsig não é nenhuma novidade para o Zen, pois o Dharma é a Qualidade, a união dos opostos como complementares, a realização do Uno. A alternativa para o materialismo ou o misticismo, é a não dualidade. A Qualidade, o Buda podem ser encontrados entre os circuitos de computadores, na arte da música, na manutenção de uma bicicleta, na faxina diária, etc.  Essa era a visão do ideal que permeiou toda a filosofia de Nietzsche - "Além do Bem e do Mal".

Tentar definir o Zen Budismo é um risco de se cometer erros - onde as armadilhas e a definição estática de palavras saem da experiência imediata do Zen - ou seja, seria como tentar agarrar o vento.
O Zen Buddhismo consiste somente na prática, é uma filosofia pragmática, cética e empiricista radical:
Sem buscar respostas imaginatórias ou a busca da verdade através do raciocínio, somente a prática de aperfeiçoamento além das limitações sujeito/objeto podem ser levadas a realidade última. Para Buda o Dharma reside entre a mente e a matéria, e esse sentimento do Uno busca a não-divisão entre os dois - e sim a integração.

Nesse contexto, o Zen é aplicado como a busca da Qualidade na prática de manutenção de motocicletas, no trabalho, na pesquisa científica ou em qualquer atividade humana. Esta é a ideia central da Metafísica da Qualidade.

Para se entender melhor o pensamento do Zen, recomedo os livros "Introdução ao Zen Budismo" de D.T Suzuki e "Mente Zen - Mente de Principiante" do mestre Shunryu Suzuki.


Charles Darwin



Robert Pirsig encontrou em seus estudos como bioquímico e na evolução darwinista a chave para o fator dinâmico que impulsionou a vida, das combinações inorgânicas até as formas de organização mais complexas - sociais e intelectuais.

A revolução de Charles Darwin, é uma influência major no conceito de Pirsig para "níveis evolucionários da moralidade". Esta aplicação da teoria foi uma vanguarda na época que a MOQ foi introduzida, mas atualmente já podem ser encontradas ideias correspondentes na biosociologia de Edward O. Wilson e na memética de Richard Dawkins.

Em resumo, o fator primário da cosmologia compreendido é o padrão estático chamado de inorgânico, que de combinações de padrões dinâmicos e aleatórios de substâncias químicas surgiram o segundo modelo da evolução: a vida. Desta forma, o segundo padrão estático chamado de biológico foi evoluindo para formas de vida mais complexas com novas combinações dinâmicas e melhores condições adaptativas com as leis estáticas - daí o surgimento da sociedade. O terceiro padrão estático de qualidade compreendido como sociedade, formas de organização de seres vivos para sobrevivência, foram ao longo do tempo gerando formas de sub-divisão de tarefas (qualidades estáticas) em que cada vez se tornou mais necessário para os humanos (topo da cadeia) o surgimento da consciência e do raciocínio lógico como um aparato de sobrevivência. No último nível do topo cosmológico portanto temos o padrão intelectual, em que ideias (memes) passam por uma clivagem evolucionária onde as que mais se adaptam no contexto social (estático) do momento sobrevivem. É importante que geralmente as ideias revolucionárias (dinâmico) entram em conflito com os valores estáticos de uma sociedade.

Em efeito, Pirsig simplesmente expandiu a aplicação do pensamento darwinista para abranger todas as realidades físicas, em vez de se resumir na realidade biológica isoladamente, A validade disto parece questionável, portanto se cada nível de Padrão de Qualidade Estática  é tratada separadamente, pode-se visualizar como a evolução pode ser aplicada na MOQ.

No padrão de qualidade estática, átomos instáveis, moléculas ou componentes quebram em combinações dentro dessa realidade inorgânica estável. Componentes estáveis têm maior Qualidade ou valor e são simbolicamente mais "moral" neste nível.

Na realidade orgânica, a evolução é aplicada de acordo como concebeu Darwin: Os mais aptos sobrevivem para reproduzir, selecionando traços úteis ao longo das gerações. Adaptação se relaciona com Qualidade, com o mais apto, o ser mais "moral".

Similarmente, dessa maneira temos o padrão de qualidade estática Social e Intelectual, no qual destes padrões o que é de maior benefício para sociedade e o ideiais intelectuais são o "mais moral" e deveria ser encorajados à persistir pelas gerações futuras. Padrões detrimentais não sobreviveriam e seriam deixadas de lado.

Pirsig nota que sempre que houveram conflitos entre o nível competitivo de moralidade, e isto também é aparente que a distinção entre social e intelectual podem ser dificultosos de se conciliarem sempre, como novos conceitos intelectuais aceitos e entre moralidades sociais incorporadas.


Henri Poincaré



Henri Poincaré foi um matemático, físico, astrônomo e filósofo francês que teve como principal aluno Bertrand Russell. Suas conclusões científicas foram primordiais para Robert Pirsig:

" Ao contrário de Fedro, esse homem, já aos 35 anos, era conhecido internacionalmente, e aos 58 era um verdadeiro monstro sagrado, a que Bertrand Russell se referia como “por unanimidade, o homem de ciência mais importante da sua geração”. Ele era, ao mesmo tempo, astrônomo, físico, matemático e filósofo. Seu nome: Jules Henri Poincaré.

Sempre me pareceu inacreditável a idéia de que Fedro tivesse enveredado por mares nunca dantes navegados. Alguém, em algum lugar, devia ter tido todas aquelas idéias antes, e a mediocridade acadêmica de Fedro era tamanha, que fazia bem o estilo dele reproduzir os conceitos elementares de algum famoso sistema filosófico que ele não se dera ao trabalho de examinar. Por isso, levei mais de um ano lendo a longuíssima e, por vezes, chatíssima história da filosofia, em busca de idéias repetidas.
No entanto, foi fascinante ler a história da filosofia dessa maneira, e me ocorreu um pensamento do qual ainda não sei bem o que fazer. Os sistemas filosóficos que supostamente deveriam diferir bastante uns dos outros, em geral dizem coisas muito semelhantes ao que Fedro pensava, com variações mínimas. Muitas vezes pensei ter encontrado o homem que ele havia plagiado, mas sempre surgiam certas diferenças sutis que mostravam que ele seguia um caminho completamente oposto. Hegel, por exemplo, a quem já me 
referi, rejeitava os sistemas filosóficos do Oriente, considerando-os anti-filosóficos. Fedro, ao, contrário, aparentemente os assimilou, ou deixou-se assimilar por eles. Não sentia nisso nenhuma contradição.


Até que cheguei a Poincaré. Aqui, não havia quase nada em comum, mas aconteceu uma coisa diferente. Fedro sobe com a maior dificuldade, seguindo por trilhas tortuosas, para atingir as mais altas abstrações, depois prepara-se para descer e, de repente, estanca. Poincaré parte das verdades científicas mais básicas, sobe até as mesmas abstrações e depois pára. As extremidades das duas trilhas se encaixam perfeitamente! Há entre elas uma total continuidade. Quando se vive nas trevas da loucura, o surgimento de outro alguém que pensa e fala como nós é quase uma graça divina. Sentimo-nos como Robinson Crusoé ao encontrar na areia as pegadas do índio Sexta-Feira.

Poincaré viveu de 1854 a 1912. Lecionava na Universidade de Paris. Pela barba e pelo pincenê fazia lembrar Henri ToulouseLautrec, que era seu contemporâneo, morava em Paris e era apenas dez anos mais jovem do que ele. Na época de Poincaré, surgiu uma profunda crise que abalou os alicerces das ciências exatas. Durante anos a verdade científica fora colocada acima de qualquer dúvida, a lógica da ciência era infalível, e se às vezes os cientistas se enganavam, era apenas porque não compreendiam as leis da ciência. Todas as grandes perguntas já haviam sido respondidas. Agora tudo que a ciência tinha a fazer era aperfeiçoar as respostas, para chegar a uma maior exatidão. É verdade que havia ainda fenômenos inexplicados, como a radioatividade, a transmissão da luz através do “éter” e a curiosa relação entre as forças magnéticas e a eletricidade. Mas no final, de acordo com os rumos da ciência no passado, tais enigmas acabariam sendo resolvidos. Quase ninguém previa que dentro de apenas algumas décadas não haveria mais espaço absoluto, tempo absoluto, substância absoluta, nem grandezas absolutas; que aquela física clássica, refúgio milenar da ciência, se tornaria apenas “aproximativa”; que os astrônomos mais sérios e respeitáveis diriam que se a humanidade olhasse durante bastante tempo através de um telescópio bastante poderoso, só conseguiria enxergar sua própria nuca!
O fundamento daquela revolucionária Teoria da Relatividade ainda era conhecido por poucas pessoas, dentre as quais se incluía Poincaré, um dos mais eminentes matemáticos da época. Em sua obra Os Fundamentos da Ciência, Poincaré disse que os antecedentes da crise da ciência remontavam a eras esquecidas. Há muito tempo se tentava em vão demonstrar o axioma conhecido como o quinto postulado de Euclides. Foi essa tentativa de demonstração que deu início à crise. O postulado euclidiano das paralelas, segundo o qual através de um dado ponto passa apenas uma linha paralela a uma reta dada, é aquele que aprendemos na geometria do ginásio. É uma das pedras fundamentais, a partir da qual se construiu todo o cálculo geométrico.
Todos os outros axiomas pareciam tão óbvios que chegavam a ser inquestionáveis: mas este, não. Entretanto, não se poderia destruí-lo sem destruir também grande parte da matemática, e não aparecia ninguém que fosse capaz de reduzi-lo a formas mais elementares. Diz Poincaré que nem se pode imaginar quanta energia se desperdiçou em busca dessa quimera. Mas finalmente, no primeiro quartel do século XIX, e quase simultaneamente, um húngaro e um russo ─ Bolyiai e Lobachevski─ conseguiram estabelecer de forma irrefutável que é impossível provar o quinto postulado euclidiano. Partiram do seguinte raciocí

nio: caso houvesse alguma maneira de reduzir o postulado a axiomas menores e mais definidos, ocorreria um outro fenômeno ─ a inversão do postulado de Euclides geraria contradições lógicas na geometria. Resolveram, então, invertê-lo, para ver no que dava. Lobachevski parte do pressuposto de que através de um ponto podem passar duas linhas paralelas a uma reta dada. E põe de lado todos os outros axiomas. A partir destas hipóteses, ele deduz uma série de teoremas, nos quais não se encontra nenhuma contradição, e acaba construindo uma geometria de lógica tão impecável quanto a da geometria euclidiana. Assim, por não haver encontrado contradições, ele provou que o quinto postulado não podia ser reduzido a axiomas mais 
simples. Não foi essa prova que assustou a todos. Foi o seu conseqüente lógico, que logo a eclipsou, assim como a quase todo o resto do campo da matemática. A matemática, pedra angular da certeza científica, de repente deixara de ser absoluta.



Havia agora duas visões contraditórias cuja autenticidade científica era inabalável. Eram verdadeiras para homens de todas as épocas, independentemente de preferências individuais.
Foi esta a origem da profunda crise que abalou a acomodação científica da Idade de Ouro. Como saber qual das duas geometrias era a verdadeira? Não havendo base para distingui-las uma da outra, haveria uma única matemática, que admitia contradições lógicas. Mas uma matemática que admite contradições lógicas internas não é mais matemática. O efeito final das geometrias nãoeuclidianas passa a ser uma simples pantomima de mágico, em que as idéias são sustentadas apenas pela fé.
E naturalmente, uma vez aberta esta porta, o número de sistemas contraditórios de verdades científicas inabaláveis fatalmente aumentaria. Um alemão chamado Riemann apresentou outro sistema impecável de geometria, que elimina não só o postulado de Euclides, como também o primeiro axioma, segundo o qual apenas uma reta pode passar por dois pontos. Este sistema não apresentava qualquer contradição lógica interna; era apenas incompatível com as geometrias de Euclides e Lobachevski.
Segundo a Teoria da Relatividade, a geometria de Riemann é a que melhor descreve o nosso mundo. 

Para resolver o problema do que seja a verdade matemática, segundo Poincaré, era necessário primeiro determinar a natureza dos axiomas geométricos. Seriam eles julgamentos sintéticos e apriorísticos, conforme dizia Kant. Ou seja, fariam parte da consciência humana, sem se relacionarem com a experiência, nem terem 

sido criados a partir dela? Poincaré achava que não. Se assim fosse, eles se imporiam a nós com uma força tal, que não conseguiríamos conceber a proposição contrária, nem construir uma estrutura teórica. Não existiriam geometrias não-euclidianas. Deveríamos, portanto, concluir que os axiomas da geometria são verdades experimentais? Poincaré também não acreditava nisso. Se tal fosse o caso, eles estariam sujeitos a contínuas mudanças e revisões, à medida que fossem surgindo novos dados experimentais. Tal idéia parece opor-se à própria natureza da geometria. Poincaré concluiu que os axiomas da geometria são convenções; uma escolha feita entre todas as convenções possíveis é orientada pelos dados experimentais, mas permanece livre, sendo limitada apenas pela necessidade de evitar qualquer contradição.


Eis por que os postulados podem conservar toda a sua carga de veracidade, mesmo que as leis experimentais que determinaram sua adoção sejam apenas aproximativas. Em outras palavras, os axiomas geométricos são apenas definições disfarçadas. Tendo identificado a natureza dos axiomas geométricos, ele 
passou a considerar outra questão: qual é a geometria verdadeira, a de Riemann ou a de Euclides?

A resposta foi que tal pergunta não tinha cabimento. Era o mesmo que perguntar se o sistema métrico era verdadeiro, e o sistema avoir-dupois, falso; se as coordenadas cartesianas eram verdadeiras, e as polares, falsas. Uma geometria não pode ser mais verdadeira do que a outra; pode ser mais conveniente. A geometria 
não é verdadeira; é vantajosa.

Poincaré procurou então demonstrar a natureza convencional de outros conceitos científicos, tais como espaço e tempo, fazendo ver que não há maneira mais, ou menos, verdadeira de determinar essas entidades. A maneira geralmente adotada é apenas a mais conveniente.
Nossos conceitos de espaço e tempo também são definições, escolhidas com base na sua conveniência, em termos da manipulação dos fatos.
Entretanto, essa concepção radical dos nossos mais básicos  conceitos científicos ainda não está completa; o mistério em torno do que sejam espaço e tempo poderá ser melhor compreendido através dessa explicação, mas agora são os “fatos” que sustentam a ordem do universo. Que são os fatos?
Poincaré dispôs-se a fazer um exame crítico do assunto. Quais os fatos a serem observados? Uma infinidade. A observação indiscriminada dos fatos tem tanta probabilidade de produzir ciência quanto tem um macaco de, sentado a uma máquina, datilografar o Pai-nosso.
O mesmo ocorre com as hipóteses. Que hipóteses? Poincaré dizia: “Um fenômeno que admita uma explicação mecânica exaustiva, admitirá também uma infinidade de outras explicações, que serão igualmente perfeitas para todas as peculiaridades descobertas experimentalmente.” Foi isso o que Fedro descobriu no laboratório; foi isso que levantou a questão que causou sua reprovação na universidade.
Dispondo o cientista de um tempo infinito, segundo Poincaré, seria necessário apenas dizer a ele: “Observe com toda a cautela”; mas como o cientista não tem tempo para observar tudo, e é melhor não observar do que observar da maneira errada, é necessário que ele faça uma escolha.
Poincaré criou algumas regras: existe uma hierarquia dos fatos. Quanto mais geral for um fato, mais valor terá. Aqueles que acontecem com maior freqüência são melhores do que os que raramente acontecem. Por exemplo, os biólogos jamais conseguiriam construir uma ciência se só existissem indivíduos, e não espécies, 
e se a hereditariedade não fizesse com que os filhos se parecessem com os pais.

Quais são os fatos que têm mais probabilidade de tornarem a acontecer? Os fatos simples. Como reconhecê-los? Escolha-se aqueles que pareçam simples. Das duas, uma: ou a simplicidade deles é genuína, ou os elementos complexos não são distinguíveis. No primeiro caso, certamente encontraremos esse fato simples outra vez, isolado ou funcionando como elemento de um fato complexo. O segundo caso também tem grande possibilidade de se repetir, porque a natureza não dá origem a esses casos assim à toa.
Onde está o fato simples? Os cientistas o procuraram nos dois extremos, no infinitamente grande e no infinitamente pequeno. Por exemplo, os biólogos instintivamente foram levados a considerar a célula mais interessante do que o animal inteiro; e, desde a época de Poincaré, a molécula protéica é mais interessante do que a célula. Os resultados comprovam a eficácia de tal procedimento, uma vez que as células e moléculas de organismos diferentes provaram ser mais semelhantes entre si do que os próprios organismos.
Como, pois, escolher o fato interessante, aquele que está incessantemente acontecendo? O método consiste precisamente nessa escolha dos fatos; portanto, o primeiro passo deve ser a criação de um método. E muitos já foram idealizados, porque nenhum é absoluto. É mais prudente começar com fatos corriqueiros, mas após o estabelecimento de uma regra comprovada, os fatos que se adequarem a ela ficarão sem sentido, porque já não transmitirão nenhum conhecimento novo. Aí a exceção é que se torna importante. Nós não buscamos as semelhanças, mas sim as diferenças mais acentuadas, por serem as mais gritantes, e também as mais instrutivas. Primeiro, buscamos os casos em que esta regra tem mais probabilidade de falhar. Distanciando-nos bastante no espaço e no tempo, poderemos descobrir que nossas regras normais foram completamente subvertidas. E essas grandes reviravoltas nos permitem enxergar as pequenas mudanças que podem ocorrer mais perto de nós. Aquilo a que deveríamos visar, porém, não é tanto a determinação de semelhanças e diferenças, mas sim a detecção de semelhanças ocultas sob aparentes divergências. A primeira vista, as regras individuais parecem ser discordantes, mas se as examinarmos com atenção, constataremos que em geral elas se parecem; são diferentes na substância, mas semelhantes na forma, na ordenação de suas partes. Ao encará-las sob esse prisma, teremos a surpresa de vê-las aumentarem e abrangerem o todo. E é nisto que 
consiste o valor de certos fatos que vêm completar a montagem de uma estrutura e mostrar que ela é a imagem fiel de outras estruturas conhecidas.

Não, concluiu Poincaré, o cientista não escolhe ao acaso os fatos a observar. Procura condensar bastante experiência e bastante reflexão num volume fino, e é por isso que qualquer livrinho de física contém tantas experiências passadas e mil vezes mais experiências possíveis, com resultados previstos.

Depois, Poincaré exemplificou o processo de descoberta do fato. Ele havia feito uma descrição geral do processo de descoberta do fato e das teorias, mas agora ia proceder a uma pequena incursão no universo de suas experiências pessoais, falando sobre as funções matemáticas que o haviam tornado famoso.
Ele tinha passado quinze dias tentando provar que tais funções não poderiam existir. Todos os dias sentava-se à secretária, passando uma hora ou duas a experimentar um grande número de combinações, sem obter qualquer resultado. Certa noite, porém, contrariando seus hábitos, tomou uma xícara de café puro, e teve insônia. As idéias acorreram aos borbotões. Poincaré sentiu que elas se encontravam e se combinavam 
aos pares estabelecendo, por assim dizer, uma configuração estável.

Na manhã seguinte, ele só teve que anotar os resultados. O acontecido fora uma verdadeira onda de cristalização. Uma onda posterior, gerada pelas analogias com a matemática tradicional, produziu o que ele mais tarde denominou “Séries Teta-Fuchsianas”. Ele ia tomar parte numa excursão geológica que partiria de Caen, cidade onde morava. As viagens sempre o faziam esquecer da matemática. No momento em que ia pôr o pé no degrau do ônibus, ocorreu-lhe a idéia, de maneira nenhuma preparada pelo que andara pensando anteriormente, de que as transformações por ele utilizadas para definir as funções fuchsianas eram
idênticas às da geometria não-euclidiana. Sem investigar essa hipótese, ele continuou tranqüilamente conversando enquanto viajava; sentia, porém, uma convicção esmagadora. Mais tarde, com calma, verificou os resultados.
Noutra ocasião, passava perto de um penhasco à beira-mar, quando fez nova descoberta, a qual se introduziu com a mesma brevidade, brusquidão e certeza imediata que a primeira. Outra ainda ocorreu enquanto ele passeava pelas ruas. Tal sistema foi elogiado; dizia-se que eram as misteriosas elaborações do gênio.

Mas Poincaré não se contentou com essa explicação tão superficial. Tentou investigar mais a fundo o que havia acontecido.
A matemática para ele não era apenas uma questão de aplicar regras, não se restringia à ciência. Não buscava só estabelecer o maior número possível de combinações de acordo com certas leis fixas. As combinações daí resultantes seriam excessivamente numerosas, inúteis e incômodas. O verdadeiro trabalho do inventor consiste em selecionar essas combinações, de modo a eliminar as que são inúteis, ou melhor, evitar a preocupação de elaborá-las, e as regras que orientam tal seleção são extremamente sutis e delicadas. E quase impossível formulá-las com precisão; elas devem ser pressentidas, não formuladas. Poincaré, pois, levantou a hipótese de que essa seleção é feita  através do que ele denominou “consciência subliminar”, uma entidade que corresponde exatamente ao que Fedro chamava consciência pré-intelectual. A consciência subliminar, para Poincaré, observa uma ampla gama de soluções para um certo problema, mas só permite que cheguem ao consciente as soluções interessantes. As soluções matemáticas são selecionadas pela consciência subliminar com base na “beleza matemática”, na harmonia dos números e formas, na elegância geométrica. “Este é um genuíno sentimento estético, conhecido de todos os matemáticos”, dizia Poincaré, “que, porém, os leigos nunca experimentaram, e que muitas vezes são tentados a ridicularizar.” E, no entanto, é essa harmonia, essa beleza, que está no centro de tudo.
Poincaré fez questão de esclarecer que não se estava referindo à beleza romântica, à beleza das aparências que ferem os sentidos. Ele se referia à beleza clássica, que provém da harmonia na organização das partes, e que pode ser captada por uma inteligência pura, dando corpo à beleza romântica, sem a qual a vida seria obscura e efêmera, um sonho do qual não se poderia distinguir os sonhos de cada um, por que não haveria base para estabelecer tal diferença.

É a busca dessa beleza clássica especial, o sentido da harmonia do cosmos que nos faz escolher os fatos que melhor contribuam para essa harmonia. Não são os fatos que geram a harmonia universal, a única realidade objetiva, mas a relação entre as coisas. O que garante a objetividade do mundo em que vivemos é o fato de que este mundo é comum a nós e aos outros seres pensantes. Ao nos comunicarmos com os outros homens, recebemos deles raciocínios harmoniosos já consagrados. Sabemos que tais raciocínios não partem de nós, e, ao mesmo tempo, reconhecemos neles, por causa da harmonia, o trabalho de seres racionais como nós. E 
na medida em que tais raciocínios pareçam adequar-se ao mundo conforme o percebemos, poderemos inferir que tais seres racionais viram o mesmo que nós; eis por que sabemos que não estivemos sonhando. É exclusivamente essa harmonia, essa Qualidade, se preferirem, que constitui a base da única realidade que poderemos conhecer.


Os contemporâneos de Poincaré recusavam-se a admitir que os fatos são pré-selecionados porque acreditavam que tal seleção destruiria a validade do método científico. Presumiam que os “fatos pré-selecionados” significavam que a verdade era uma questão de “gosto”, e tacharam as idéias de Poincaré de convencionalistas. Rejeitavam energicamente o fato de que o seu próprio “princípio de objetividade” não era em si um fato observável ─ e, portanto, segundo os seus próprios padrões, deveria ser inutilizado.
Eles achavam que deviam reagir assim porque senão todo o fundamento filosófico da ciência iria por água abaixo. Poincaré não forneceu quaisquer soluções para esse dilema. Não penetrou o suficiente nas implicações metafísicas daquilo que estava dizendo, para obter uma solução. Deixou de dizer que a seleção dos fatos, antes de serem “observados”, é uma questão de gosto apenas num sistema metafísico dualista, envolvendo só sujeito e objeto! Quando a Qualidade entra em cena, como uma terceira entidade metafísica, 
a pré-seleção dos fatos deixa de ser arbitrária. Ela não se baseia em opiniões subjetivas e caprichosas, mas na Qualidade, na realidade em si. 

Isso dá cabo do dilema.

Era como se Fedro tentasse montar um quebra-cabeça e, por falta de tempo, houvesse deixado um lado inteiro por terminar. Poincaré procurou montar o quebra-cabeça dele, também: sua idéia de que o cientista seleciona os fatos, hipóteses e axiomas com base na harmonia também deixava um lado do quebra-cabeça 
por completar. Deixar no mundo científico a impressão de que a fonte de toda a realidade científica é apenas uma harmonia subjetiva e caprichosa é resolver problemas epistemológicos deixando uma bainha desfeita na fronteira com a metafísica, que torna a epistemologia inaceitável.

Mas sabemos, a partir da metafísica de Fedro, que a harmonia a que Poincaré se referia não é subjetiva. É a fonte dos sujeitos e objetos, e existe numa relação anterior a eles. Não é caprichosa, é a força que se opõe à inconstância; o princípio organizador de todo o pensamento científico e matemático, que destrói a inconstância e sem o qual nenhum pensamento científico pode avançar.
Emocionou-se muito ao descobrir que essas bordas inacabadas se encaixavam perfeitamente uma na outra, numa harmonia a que tanto Fedro quanto Poincaré se referiam, produzindo uma estrutura de pensamento completa, capaz de unir as linguagens isoladas da Arte e da Ciência numa única linguagem." 

(ZAMM; págs. 261 até 270)



William James



                                                                     


William James foi o principal nome da ciência norte-americana no final do séc.XIX e começo do séc.XX. Foi um importante psicólogo que influenciou diretamente o surgimento da psicanálise e o filósofo criador do movimento chamado pragmatismo.

Nas palavras de James, " o pragmatismo é a união  do racionalismo científico com o empiricismo em sua forma mais pura e investigativa."

James interagiu com uma ampla gama de escritores e acadêmicos ao longo de sua vida, incluindo seu padrinho Ralph Waldo Emerson, seu afilhado William James Sidis, e outros como Bertrand Russell, Charles Peirce, George Santayana, John Dewey, Mark Twain e Carl Jung. Atualmente ele é considerado como um herói pelo filósofo Daniel Dennett.

Sem dúvidas, o pragmatismo é a principal ferramenta no modus constructus da MOQ.

Nas palavras de Robert Pirsig:

" James na verdade dispunha de dois sistemas principais de filosofia: o que chamava de pragmatismo e o outro, o empirismo radical.
O pragmatismo é o que o faz mais celebrado: a idéia de que o teste da verdade deve ser sua praticabilidade ou utilidade. De um ponto de vista pragmático a definição de “ao redor” do esquilo era verdadeira porque era útil. Falando pragmaticamente, o homem nunca tinha andado ao redor do esquilo.
Phaedrus, como a maioria das pessoas, sempre tinha presumido que o pragmatismo e a praticabilidade significavam virtualmente a mesma coisa, mas quando se deteve numa citação exata do que James tinha dito sobre o assunto observou algo diferente:
Disse James: “A verdade é uma espécie do bem e não, como usualmente se supõe, uma categoria distinta do bem e a ele coordenada”. Disse ele: “Verdadeiro é o nome do que quer que seja que pareça bom no que diz respeito à crença.”
“A verdade é uma espécie do bem”. Precisamente! É isso exatamente o que a Metafísica da Qualidade quer dizer. A verdade é um padrão intelectual estático incluído numa entidade mais ampla chamada Qualidade.
James tinha tentado popularizar seu pragmatismo fazendo-o vestir a casaca da praticalidade. Estava sempre pronto a utilizar expressões como “valor em espécie” e “resultados” e “lucros” para tornar o pragmatismo inteligível ao “leigo”, mas isso colocou James em maus lençóis. O pragmatismo foi atacado por críticos como uma tentativa de prostituir a verdade aos valores da feira livre. James ficou furioso com essa interpretação equivocada e lutou bravamente para desfazê-la, mas nâ verdade nunca conseguiu superar aquele ataque.
O que Phaedrus notou é que a Metafísica da Qualidade evitava esse ataque deixando claro que o bem ao qual a verdade se subordina é a Qualidade Dinâmica, não a praticabilidade. A compreensão equivocada de James adveio porque não existia uma estrutura intelectual clara para distinguir a qualidade social da Qualidade Dinâmica e durante sua existência vitoriana as duas eram monstruosamente confundidas. Mas a Metafísica da Qualidade afirma que a praticabilidade é apenas um padrão social do bem. É imoral que a verdade esteja subordinada a valores sociais, uma vez que seria uma forma inferior de evolução devorando uma forma superior.
A idéia de que a satisfação por si só deve ser o critério de avaliação de qualquer coisa é muito perigosa, segundo a Metafísica da Qualidade. Há diferentes tipos de satisfação e alguns deles são pesadelos morais. O Holocausto trouxe satisfação aos nazistas. Para eles aquilo era qualidade. Consideraram-no prático. Mas era uma qualidade ditada por padrões sociais e biológicos de nível baixo, cujo propósito geral era retardar a evolução da verdade e da Qualidade Dinâmica. James provavelmente teria ficado horrorizado ao constatar que os nazistas podiam usar seu pragmatismo com a mesma liberdade que qualquer um, e Phaedrus não encontrava nada que pudesse evitá-lo. Mas achava que a classificação que a Metafísica da Qualidade fazia dos padrões estáticos do bem prevenia aquele tipo de aviltamento.
O segundo dos dois principais sistemas de filosofia de James, que ele declarou independente do pragmatismo, foi seu empirismo radical. Com isso ele queria dizer que sujeitos e objetos não são o ponto de partida da experiência. Sujeitos e objetos são secundários. São conceitos derivados de algo mais fundamental que ele descreveu como “o fluxo imediato da vida que fornece o material para nossa posterior reflexão, com suas categorias conceituais”. Nesse fluxo básico da experiência, as distinções do pensamento reflexivo, como as entre consciência e conteúdo, sujeito e objeto, mente e matéria, ainda não emergiram nas formas em que as fazemos. A experiência pura não pode ser chamada nem de física nem de psíquica: logicamente precede essa distinção.
Em sua última obra, inacabada, Alguns problemas de filosofia, James condensou essa descrição numa única sentença: “Deve sempre haver uma discrepância entre os conceitos e a realidade, porque os primeiros são estáticos e descontínuos, enquanto que a segunda é dinâmica e fluente.” Ali James tinha escolhido exatamente as mesmas palavras que Phaedrus tinha usado na subdivisão básica da Metafísica da Qualidade.
O que a Metafísica da Qualidade acrescenta ao pragmatismo de James e ao seu empirismo radical é a idéia de que a realidade primal da qual surgem sujeitos e objetos é o valor. Assim fazendo parece unir o pragmatismo e o empirismo radical numa única textura. Valor, o teste pragmático da verdade, é também a experiência empírica primária. A Metafísica da Qualidade diz que a pura experiência é valor. A experiência que não é valorizada não é experimentada. As duas coisas são uma mesma coisa. É aí que se encaixa o valor. O valor não se encontra na rabeira de uma série de deduções científicas superficiais que o localiza em algum ponto numa misteriosa zona não especificada da córtex cerebral. O valor está exatamente na dianteira da procissão empírica.
No passado os empiristas tentaram manter a ciência livre dos valores. Os valores foram considerados uma poluição do processo científico racional. Mas a Metafísica da Qualidade deixa claro que a poluição vem de ameaças à ciência feitas por níveis estáticos inferiores da evolução: valores biológicos estáticos como o medo biológico que ameaçou as experiências de Jenner com a varíola; valores sociais estáticos como a censura religiosa que ameaçou Galileu com a roda dentada. A Metafísica da Qualidade diz que a rejeição empírica que a ciência faz aos valores biológicos e sociais é não apenas racionalmente correta, mas também moralmente correta porque os padrões intelectuais da ciência pertencem a uma ordem evolutiva mais elevada do que os velhos padrões biológicos e sociais.
Mas a Metafísica da Qualidade também diz que a Qualidade Dinâmica — a força de valor que escolhe uma solução matemática elegante em vez de uma solução laboriosa, ou um experimento brilhante em vez de um obscuro e inconcluso — já é uma outra matéria. A Qualidade Dinâmica é uma ordem moral mais elevada do que a verdade científica estática e é tão imoral que os filósofos da ciência tentem suprimir a Qualidade Dinâmica quanto é para as autoridades eclesiásticas suprimir o método científico. O valor Dinâmico é uma parte integrante da ciência. Está na dianteira do progresso científico.
De qualquer forma, tudo aquilo sem dúvida respondia à questão de saber se a Metafísica da Qualidade era uma forma estranha e pretensiosa de ver as coisas, desviada do bom caminho. A Metafísica da Qualidade é uma continuação da corrente principal da filosofia americana no século 20. É uma forma de pragmatismo, de instrumentalismo, que afirma que o teste para a verdade é o bem. Acrescenta que esse bem não é um código social nem uma intelectualização, como o Absoluto de Hegel. É a experiência direta do dia-a-dia. Através dessa identificação do puro valor com a pura experiência, a Metafísica da Qualidade prepara o terreno para uma ampliação do modo de se olhar para a experiência, que pode resolver toda sorte de anomalias com que o empirismo tradicional não foi capaz de arcar."  


(LILA, págs. 387 até 391).





Eugen Herrigel





O livro “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”, do filósofo alemão Eugen Herrigel (1884-1955), tem o mérito de ser um dos principais responsáveis por introduzir e popularizar o pensamento zen budista no ocidente. 

Teve influência óbvia para o título de ZAMM, além da abordagem de sabedoria do Zen para a utilização prática de auto-disciplina. 

Concentração, respiração, tensão e relaxamento. Porém o que salta aos olhos é a relação insólita, para nós ocidentais, entre ser ativo e passivo simultaneamente em uma determinada ação.

No Ocidente, as pessoas são treinadas para que focalizem um objetivo e se esforcem para alcançá-lo, imprimindo nesta ação toda sua individualidade.

Porém, na concepção zen-budista, ocorre uma escolha de objetivo, mas a individualidade do aprendiz de arqueiro deve dar lugar a um sentimento de participação com o objeto. É basicamente a experiência do sujeito se tornando uno com a matéria.








Lao Tsé










O velho sábio chinês é o pensador original da filosofia oriental que influenciou o Confucionismo e o Zen Budismo através do Tao Te Ching. O taoísmo, é a principal conjutura de escritos sobre o monismo do Tao - a ideia de unidade entre as forças universais (ying e yang) opostas e complementares que exercem o universo.

A integração dessas forças (sujeito e matéria) identifica como o caminho do sábio - a união é a terceira força que dinamiza a vida - a Qualidade ou o Tao.

Assim como Tao, indefinível e absoluto, é a Qualidade.

Portanto, a Metafísica da Qualidade e o Tao Te Ching são um só.

"Então, sem pensar, Fedro foi até a estante e retirou um livrinho encadernado em cartolina azul. Era um manuscrito que ele mesmo copiara e encadernara havia vários anos, por não ser mais encontrado nas livrarias. Era o Tao-te-ching, de Lao Tsé, uma obra com 2.400 anos de idade. Começou então a reler aquelas linhas já tão conhecidas, mas estudando-as, desta vez, para ver se conseguiria estabelecer uma certa correspondência. Lia e interpretava ao mesmo tempo.

Leu a seguinte frase:

A Qualidade que pode ser definida não é a Qualidade Absoluta.
Ele dissera exatamente isso.
Os nomes que lhe podem ser dados não são Absolutos.
Ela é a origem do céu e da terra.
Ao ser designada, transforma-se na mãe de todas as coisas...
Mas era aquilo mesmo!
A Qualidade (a qualidade romântica) e suas manifestações (a
qualidade clássica) compartilham da mesma natureza. Ela recebe
nomes diferentes (sujeitos e objetos) ao se manifestar em termos
clássicos.
Em conjunto, a qualidade romântica e a clássica podem ser
chamadas “o princípio unificador”.
Deslocando-se de alguns mistérios para outros mais profundos, ela constitui o portal que leva ao segredo de toda a vida.
A Qualidade tudo penetra.
E não cessa de manifestar-se!
De modo insondável e inexaurível.
Como a nascente de todas as coisas.
E, no entanto, permanece clara e cristalina como a água.
Não se sabe de quem ela descende.
E uma imagem daquilo que existia antes de tudo...
Aproxima-te e ela no mesmo instante te servirá...
Quando olhada, não pode ser vista... Quando escutada, não pode ser ouvida... 
Quando agarrada, não pode ser tocada... 
Estas três virtudes escapam às nossas buscas, fundindo-se numa unidade.
A luz não surge quando ela se eleva.
Nem provém a escuridão do seu ocaso.
Perene e eterna,
Ela não pode ser definida,
Retornando ao mundo do nada.
Por isso é chamada a forma do amorfo,
A imagem do nulo.
Por isso é chamada esquiva.
Ao encontrá-la, não lhe verás a face.
Ao segui-la, não lhe verás as costas.
Aquele que se apega à Qualidade ancestral
É capaz de conhecer os inícios primevos
Que são a continuidade da Qualidade.

Ao ler aquilo, Fedro viu que as linhas e os versos se encaixavam, todos no lugar certo. Era exatamente aquilo. Era aquilo que ele vinha dizendo embora de modo menos rico, mais mecânico.
Naquele livro não havia coisas vagas nem imprecisas. Mais preciso e definido, impossível. Era bem o que ele tinha dito, só que numa língua diferente, com outras raízes e origens. Vinha de outro vale, ver o que havia naquele vale, sem encará-lo como uma história contada por estranhos, mas sim como parte do vale natal. Agora, ele compreendia tudo.

Conseguira decifrar o enigma. Continuou a ler. Verso por verso, página por página. Não havia sequer uma discrepância. Aquilo a que ele se referira o tempo todo como Qualidade, era aqui o Tao, a grande força central, geradora de todas as religiões, tanto orientais como ocidentais, passadas e presentes, de todo o conhecimento, de tudo.

(ZAMM, págs. 253-254).





William James Sidis






A vida de William James Sidis, é espantosa.

Sobrinho do também brilhante, William James, foi um garoto com QI de 300 (!) que com apenas 9 anos  marcou um recorde em 1909 ao ser a pessoa mais nova a entrar na Universidade de Harvard.

Ele se tornou primeiramente famoso por sua precocidade, e mais tarde por sua excentricidade e afastamento da vida pública. Foi um excepcional escritor nas áreas de medicina, psicologia, filosofia, política, cosmologia, biologia, antropologia e linguística.

No início de 1910, seu domínio da matemática avançada era tal que ele deu uma palestra no Clube de Matemática de Harvard sobre corpos quadridimensionais, fazendo Daniel F. Comstock, professor no MIT, predizer que Sidis se tornaria um grande matemático e líder naquela ciência no futuro. Sidis iniciou seus estudos com uma carga horária integral em 1910 e recebeu seu bacharelado,cum laude, em 18 de Junho de 1914, aos 16 anos.
Logo após a graduação, ele afirmou a repórteres que gostaria de viver a vida perfeita, e que para ele isso significava viver em reclusão. Assim, se distanciou da ciência positivista por suas ideias vanguardistas que batiam de frente com a visão acadêmica, se tornando um vilão constantemente caluniado pela mídia.

Coincidentemente como Sidis, Robert Pirsig foi um garoto superdotado. Não se sabe se conseguiu em sua vida curta (morreu aos 46 de hemorragia cerebral) manter a sanidade com a desmoralização que a sociedade o impôs.

Particulamente, a mente brilhante de William James Sidis, era foco de interesse constante, tanto de valor biográfico quanto seus trabalhos, para Robert Pirsig. Seus estudos sobre os nativos americanos e antropologia reveladores tiveram importância imensa para a MOQ. Não era a toa que Sidis foi um renegado pela comunidade científica que sempre fez esforços para ocultá-lo da história.

" De volta às planícies, certa noite, num motel de estrada, sem nada para ler, Phaedrus encontrou um exemplar da revista Yankee, cheia de orelhas marcadas. Folheou-a e parou num breve relato de Cathie Slater Spence intitulado “Em busca do trouxa de 10 de abril”.
Era sobre uma criança prodígio que acusara possivelmente o mais alto grau de inteligência já observado, e que no fim da vida não tinha dado em nada. “Nascido em 10 de abril de 1898”, dizia o artigo, “William James Sidis falava cinco línguas e lia Platão no original aos cinco anos. Aos oito passou no vestibular para Harvard, mas teve que esperar três anos para conseguir matrícula. Mesmo assim, tornou-se o mais jovem erudito de Harvard e diplomou-se cum laudae em 1914, aos dezesseis anos. Apareceu diversas vezes em “Acredite se quiser”, de Ripley. Esteve na primeira página do New York Times dezenove vezes.”
Mas, após se diplomar em Harvard, o “Garoto Maravilha” passou a se ocupar de seus obscuros interesses, aparentemente desprovidos de sentido. A imprensa, que o tinha celebrizado, voltou-se contra ele. O exemplo mais cáustico apareceu no New York Times de 1937. Intitulado “O trouxa do 10 de abril”, o artigo ridicularizava tudo, desde os hobbies de Sidis até suas características físicas. Sidis moveu uma ação por difamação e invasão de privacidade. Embora tivesse recebido uma pequena dotação na questão da difamação, a acusação de invasão de privacidade foi recusada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, numa decisão que firmou jurisprudência. “O artigo é impiedoso em sua dissecação de detalhes íntimos da vida pessoal do objeto da matéria”, admitiu a Corte, mas Sidis era uma “figura pública” e portanto não podia reivindicar proteção contra os interesses da imprensa, que continuou o acossá-lo até sua morte, em 1944. Os necrológios o chamaram de “fracasso prodigioso” e “um gênio extinto”, que não obstante seus talentos nunca tinha conseguido nada de significativo.
Dan Mahony, de Ipswich, Massachusetts, leu a respeito de Sidis em 1976 e ficou intrigado. “O que ele estaria realmente pensando e fazendo durante todo aquele tempo?” — era o que Mahony se perguntava. “É verdade que teve empregos mal remunerados, mas Einstein surgiu com a teoria da relatividade quando trabalhava num registro de patentes. Senti que Sidis estava metido em mais coisas do que as pessoas supunham.”
Mahony passou os últimos dez anos examinando o trabalho de Sidis. Num sótão poeirento encontrou um volumoso manuscrito intitulado As tribos e o Estado, no qual Sidis persuasivamente argumentava que o sistema político da Nova Inglaterra tinha sido profundamente influenciado pela federação democrática dos índios penacooks.
Ao ler essa frase, Phaedrus foi percorrido por uma descarga elétrica. Mas o artigo continuava: “Quando Mahony enviou o livro de Sidis O animado e o inanimado para outro gênio excêntrico, Buckminster Fuller, este achou um “excelente trabalho em cosmologia” que, para seu assombro, predizia a existência dos buracos negros — em 1925!
Mahony desenterrou uma novela de ficção científica, escritos políticos e econômicos e 89 colunas de jornal sobre Boston, que Sidis tinha escrito sob pseudônimo. “O espantoso é que podemos ter apenas perfurado a superfície do que Sidis produziu”, diz Mahony. “Por exemplo, encontramos apenas uma página de um manuscrito chamado Os caminhos da paz, e pessoas que conheciam Sidis afirmam que viram muitos outros manuscritos. Penso que Sidis ainda nos reserva algumas surpresas.”
Phaedrus pousou a revista, sentindo-se como se alguém tivesse estilhaçado a janela do motel com uma pedra. Releu o artigo inúmeras vezes, num aturdimento, enquanto o impacto do que lia ia penetrando cada vez mais fundo. Naquela noite mal pôde dormir.
Parecia que há muito tempo atrás, na década de 30, Sidis tinha formulado exatamente a mesma tese sobre os índios. Ele tentou dizer às pessoas uma das coisas mais importantes que podem ser ditas sobre seu país e elas retribuíram chamando-o publicamente de “trouxa” e não publicando o que ele escrevia. Tudo indicava que nem havia mais como descobrir o que Sidis tinha dito.
Phaedrus tentou entrar em contato com o Mahony mencionado no artigo, mas não conseguiu encontrá-lo, talvez, em parte, porque seu esforço era só meio-sincero. Sabia que mesmo que chegasse a pôr os olhos no material de Sidis pouca coisa poderia fazer. O problema não era que não fosse fidedigno. O problema era que ninguém estava minimamente interessado."
(LILA, págs. 62-64).



James Vernes Dussenberry




Antropólogo, arqueológo, professor e advogado dos direitos dos nativos americanos.
Foi um amigo muito próximo de Pirsig, no qual admirava seu diferencial em realmente entender com intimidade os nativos americanos. Aparece constantemente em ZAMM e Lila como introdutor de Pirsig em contato com os indígenas.

"O único assunto sobre o qual discorria com entusiasmo eram os índios, particularmente os índios algonquianos, os chippewa-crees, da fronteira com o Canadá, sobre os quais estava fazendo tese de doutorado em antropologia. Costumava deixar bem claro que, a não ser pelos índios, que tinha amparado durante vinte e um dos vinte e três anos de magistério, achava todos aqueles anos um desperdício de vida.
Ele era o orientador de todos os estudantes de origem indígena da faculdade, cargo que, até onde se sabia, nunca tinha sido de mais ninguém. Os estudantes eram um elo de conexão. Fazia questão de conhecer suas famílias e visitá-las e usar isso como via de acesso às suas vidas. Passava todos os fins de semana e férias que podia nas reservas, participando de suas cerimônias, levando recados, transportando as crianças doentes de carro para o hospital, falando com as autoridades quando eles se metiam em encrenca e, além disso, entregando-se completamente aos modos e traços de personalidade e segredos e mistérios desse povo que ele amava cem vezes mais do que o seu próprio.
Poucos anos após ter completado o doutorado, ele deixaria o Departamento de Inglês em caráter definitivo, passando a ensinar antropologia. Podia-se imaginar que essa seria uma boa solução para ele, mas pelo que Phaedrus ouvia dizer, tudo indicava que não ia ser. Ele não era um excêntrico apenas no campo da língua inglesa, mas um excêntrico em antropologia também.
Sua maior excentricidade parecia ser a recusa em aceitar a “objetividade” como um critério antropológico. Achava que a objetividade não tinha cabimento na condução da investigação antropológica.
Seria o mesmo que dizer que o Papa não tem cabimento na Igreja Católica. Na antropologia americana aquela era a pior apostasia possível, e Dusenberry foi rapidamente informado disso. Cada uma das universidades americanas nas quais tentou se inscrever para fazer estudos de pós-graduação o rejeitou. Mas, ao invés de modificar suas convicções, ele contornou todo o sistema universitário americano e chegou ao Professor Ake Hultkranz, de Uppsala, a mais antiga universidade sueca, e estava para receber seu título de doutor por lá. Toda vez que Dusenberry falava nisso, surgia em seu rosto um sorriso de gato-que-comeu-o-canário. Ura americano tirando o Ph.D. sobre índios americanos na Suécia? Era ridículo!
— O problema com a abordagem objetiva — dizia Dusenberry — é que a gente não aprende muita coisa desse jeito. ... O único jeito de descobrir coisas sobre os índios é se preocupando com eles, e conquistando seu afeto e respeito... aí eles fazem qualquer coisa por nós... Mas se a gente não fizer assim... — Ele sacudia a cabeça e seus pensamentos iam se dispersando.
— Já vi esses pesquisadores “objetivos” virem até as reservas — dizia ele — e não chegarem a lugar nenhum...
— Tem esse mito pseudocientífico de que quando a gente é “objetivo” a gente simplesmente desaparece da face da Terra e passa a ver tudo sem distorções, como realmente é, feito Deus no céu. Mas isso é besteira. Quando uma pessoa é objetiva, sua atitude é de afastamento. Fica com um ar distante, de pedra, no rosto.
— Os índios vêem isso. Vêem isso melhor do que a gente. E quando vêem isso, não gostam. Não sabem em que diabo de lugar aqueles antropólogos “objetivos” estão e isso faz com que fiquem desconfiados e então se fecham e não dizem nada...
— Ou só dizem bobagens... nas quais, é claro, um bando de antropólogos acredita, de início, porque foram obtidas de modo “objetivo”... e os índios ficam rindo deles pelas costas.
— Alguns desses antropólogos acabam virando figurões em seus departamentos — continuava Dusenberry — porque dominam aquele dialeto. Mas eles não sabem tanto das coisas quanto pensam. Sobretudo, não gostam das pessoas que dizem isso a eles... como eu... — Ele ria.
— Por isso é que não sou objetivo a respeito dos índios — dizia ele. — Acredito neles e eles em mim e essa é a diferença. Eles me disseram que tinham me contado coisas que nunca tinham contado a nenhum outro homem branco, porque sabiam que nunca as usaria contra eles. É uma forma completamente diferente de se relacionar com eles. Os índios primeiro, a antropologia depois...
— Isso me limita de várias maneiras. Há tantas coisas sobre as quais não posso falar. Mas é melhor saber muito e dizer pouco, acho eu, do que saber pouco e dizer muito... não concorda?
Como Phaedrus era novo no Departamento de Inglês, Du-senberry manifestou um interesse curioso por ele. Dusenberry sentia curiosidade por tudo, e à medida que ia conhecendo Phaedrus melhor essa curiosidade crescia. Para sua surpresa, eis ali alguém que parecia ainda mais alienado do que ele, alguém que tinha feito estudos de pós-graduação em filosofia hindu, em Benares, índia, que loucura, e sabia alguma coisa sobre diferenças culturais. E o que era mais importante, Phaedrus parecia ter uma mente bem analítica.
— Isso é o que eu não tenho — tinha dito Dusenberry.
— Sei coisas sobre esse povo que dariam volumes de texto, mas não sei como estruturá-las. Não tenho esse tipo de cabeça.
Por isso, sempre que podia despejava horas e horas de informação sobre os índios americanos nos ouvidos de Phaedrus, esperando obter dele uma estrutura geral, um quadro do que aquilo tudo queria dizer, em termos mais amplos. Phaedrus escutava, mas não tinha as respostas que ele queria.
Dusenberry se interessava principalmente pela religião indígena. Estava convicto de que ela explicava a lentidão do índio em se integrar à cultura branca circundante. Tinha observado que as tribos que tinham as práticas religiosas mais ferrenhas eram as mais “atrasadas”, segundo os padrões brancos, e queria que Phaedrus fornecesse suporte teórico para aquilo. Phaedrus achava que provavelmente Dusenberry estava correto, mas não conseguia pensar num suporte teórico e achava a tese, como um todo, um tanto acadêmica e chata. Passou-se mais de um ano sem que Dusenberry tentasse corrigir essa impressão. Limitou-se a continuar a alimentar Phaedrus de informação sobre os índios e a receber em troca a falta de idéias de Phaedrus.

Recordava-se da hostilidade e amargura de Dusenberry em relação à “antropologia objetiva”; mas na altura achava que Dusenberry era apenas um iconoclasta. Não era.
Uma refutação de seu livro pelos especialistas seria algo mais ou menos assim:
Uma tese deste tipo é pitoresca e interessante, mas não pode ser considerada útil à antropologia, sem um suporte empírico. A antropologia busca ser uma ciência do homem, não uma coleção de fuxicos e intuições sobre o homem. Não se trata de antropologia quando alguém sem qualquer treinamento ou experiência passa uma noite numa reserva, numa tenda cheia de índios, tomando uma droga alucinógena. Quem pretende dessa forma ter descoberto algo que não foi percebido por centenas de pesquisadores metódicos e cuidadosamente preparados, que passaram toda uma vida no campo, exibe uma “super-confiança” que a disciplina da antropologia procura restringir.
Deve-se mencionar que este tipo de tese não é absolutamente incomum em antropologia. Na verdade, nos primórdios da história da antropologia, teses assim dominavam o campo. Foi somente no início deste século que Franz Boas e seus colaboradores começaram a perguntar, com seriedade: — O que deste material é ciência e o que não é? — Toda a bobajada especulativa e intuitiva, não corroborada por fatos reais, foi metodicamente extirpada do campo. Todo antropólogo, cedo ou tarde, chega a teses especulativas sobre as culturas que está estudando. Faz parte do fascínio que o mantém interessado no campo. Mas todo antropólogo é treinado para não se permitir divulgar essas teses até se sentir seguro, após o estudo de fatos e provas, de que sabe do que está falando.

(LILA; págs. 47 até 57)




Claude Levi-Strauss




Foi um dos raros antropólogos/filósofos à entenderem intimamente a realidade dos povos indígenas e a filosofia budista.

Não se considerava um típico estudioso desses povos como a visão acadêmica propôe, nem achava a civilização industrial como superior.

Robert Pirsig cita-o brevemente nas páginas de Lila, em um raro elogio pelo seu diferencial.

"Muitos antropólogos pareciam ser gente inteligente, interessada e humana, mas estavam todos operando dentro da muralha do sistema imunológico da antropologia. Podia ver que alguns antropólogos estavam lutando para sair para fora da muralha, mas dentro da muralha não havia ferramental intelectual que lhes permitisse sair.
À medida que refletia mais sobre a muralha, constatava que todos os caminhos dentro dela pareciam levar a Franz Boas que, em 1899, tinha se tornado o primeiro professor de antropologia na Universidade de Columbia, e tinha de tal forma dominado o campo que quase tudo que até hoje se produz na América em termos de antropologia jaz à sua sombra. Alunos que estudaram sob seu domínio intelectual tornaram-se famosos: Margaret Mead, Ruth Benedict, Robert Lowie, Edward Sapir, Alfred Kroeber, Paul Radin e outros. Produziram uma florescente literatura antropológica, tão grande e tão rica que seu trabalho às vezes passa equivocadamente por tudo que há na antropologia cultural. A chave para penetrar na muralha estava em reexaminar as atitudes filosóficas do próprio Boas.
A formação de Boas era em matemática e física, na Alemanha do século 19. Sua influência residia não no estabelecimento de uma determinada teoria particular em antropologia, mas no estabelecimento de um método de investigação antropológica. Esse método seguia os princípios da ciência “rígida” em que tinha sido treinado.
Margaret Mead dizia: “Ele temia a generalização prematura como se fosse a peste bubônica e continuamente nos advertia contra ela.” A generalização deveria se basear nos fatos e somente nos fatos.
“É indubitável que a ciência era sua religião”, dizia Kroeber. “Afirmava que suas convicções iniciais eram materialistas. A ciência não poderia tolerar nada ‘subjetivo’; os julgamentos de valor — e por contágio até os valores vistos enquanto fenômeno — tinham de ser rigorosamente excluídos.”
Numa tira com o cabeçalho “Goldschmidt”, Phaedrus tinha copiado a seguinte afirmativa: “O empirismo, essa preocupação com o fato, com o detalhe, com a manutenção do registro, Boas transmitiu a seus alunos e à antropologia. É um elemento tão primordial no pensamento antropológico, que a expressão ‘poltrona do antropólogo’ é um opróbrio, e duas gerações depois ainda insistimos no trabalho de campo como um requisito para qualquer reivindicação de competência antropológica.”
Quando Phaedrus terminou de ler a respeito de Boas, estava confiante em que havia identificado a fonte do sistema imunológico contra o qual tinha que lutar, o mesmo sistema imunológico que havia rejeitado as posições de Dusenberry. Era a ciência do século 19 e sua insistência em que a ciência é o único método para se determinar o que é verdadeiro e o que não passa de um conjunto de crenças. Surgiram muitas outras escolas em antropologia, além da de Boas, mas Phaedrus não conseguiu encontrar nenhuma que se opusesse a ele em termos de objetividade científica.
À medida que continuava a ler, Phaedrus percebia cada vez mais os efeitos negativos que essa aplicação da ciência vitoriana tinha tido sobre a antropologia cultural. O que tinha acontecido é que Boas, ao sobrepor os critérios das ciências físicas à antropologia cultural, tinha demonstrado não só que as teorias dos antropólogos de poltrona não tinham suporte científico, mas que qualquer teoria antropológica não tinha suporte científico, já que não podia ser provada pelos rigorosos métodos que Boas tinha tomado emprestado do campo da física. Boas parecia pensar que um dia uma teoria naqueles moldes emergiria dos fatos, mas já tinha se passado um século desde que Boas levantou essa expectativa, e até hoje nenhuma tinha emergido. Phaedrus estava convencido de que jamais emergiria. Os padrões de uma cultura não funcionam em conformidade com as leis da física. Como vamos provar, em termos das leis da física, que existe uma determinada atitude dentro de uma determinada cultura? O que é uma atitude, em termos das leis de interação molecular? O que é um valor cultural? Como vamos demonstrar cientificamente que uma determinada cultura tem determinados valores? Não dá.
A ciência não tem valores. Não oficialmente. O campo inteiro da antropologia estava de tal forma regido por cartas marcadas que ninguém podia provar nada de uma natureza geral sobre ninguém. O que quer que se dissesse, podia ser derrubado a qualquer hora por qualquer idiota, a pretexto de que não era científico.
A teoria que existia era marcada por ásperas discussões sobre diferenças que nada tinham de antropológicas. Quase nunca eram discussões sobre acuidade de observação. Eram discussões sobre significados abstratos. Dava a impressão de que tão logo alguma pessoa dissesse algo teórico era o sinal para o início de um enorme entrevero sobre diferenças que não poderiam ser solucionadas por meio de informações antropológicas.
O campo inteiro se parecia com uma rodovia cheia de motoristas enraivecidos, se xingando e se acusando mutuamente de não saber dirigir, quando o verdadeiro problema estava na estrada em si. A estrada tinha sido aberta como o estudo científico do homem, buscando equiparar-se às ciências físicas. O problema é que o homem não se presta a esse tipo de estudo científico objetivo. Presume-se que o objeto do estudo científico fique quieto. Presume-se que siga as leis de causa e efeito de tal forma que uma dada causa terá sempre um dado efeito, e assim indefinidamente. O homem não faz assim. Nem mesmo os selvagens.
O resultado foi o caos teórico.
Phaedrus gostava de uma descrição que tinha lido no livro Teoria em antropologia, de Robert Manners e David Kaplan, da Universidade de Brandeis. “Espalhados pela literatura antropológica”, escreveram eles, “há um sem-número de palpites, insights, hipóteses e generalizações. Tudo indica que vão permanecer espalhados, esboçados, desconectados uns dos outros, razão pela qual freqüentemente são perdidos ou esquecidos. Há uma tendência, a cada nova geração de antropólogos, de começar tudo de novo.”
“A construção de teorias na antropologia cultural fica parecendo a técnica da queimada”, diziam eles, “em que os nativos retornam esporadicamente a antigos campos de cultivo que foram recobertos pelo mato e metem a foice e queimam e plantam durante alguns anos.”
Phaedrus podia ver a foice e o fogo em todo canto que olhava. Alguns antropólogos diziam que a cultura era a essência da antropologia. Outros diziam que essa coisa chamada cultura não existe. Uns diziam que a história é tudo, outros que a estrutura é tudo. Outros ainda diziam que tudo é função. Outros mais, que tudo são valores. Alguns, na trilha da pureza científica de Boas, diziam que definitivamente não há valores.
Essa idéia de que a antropologia não tem valores ficou gravada na mente de Phaedrus como “o lugar”. Ali era onde se podia abrir uma brecha na muralha. Não há valores, hem? Não há Qualidade, não é? Era ali que ia focalizar o ponto em que começaria o ataque.
Evidentemente, o que muitos estavam tentando fazer era escapar dessas discussões metafísicas condenando todo tipo de teoria e se recusando a falar, sequer, de coisas teóricas redutivas, como o que os selvagens fazem, de forma geral. Restringiam-se ao que o seu selvagem em particular costumava fazer às quartas-feiras. Afinal, era seguro, cientificamente — e cientificamente inútil.
O antropólogo Marshall Sahlins escreveu: “O próprio termo ‘universal’ tem uma conotação negativa nesse campo, porque sugere a busca de uma ampla generalização que foi virtualmente declarada não-científica pela antropologia americana acadêmica e particularizante do século 20.”
Phaedrus imaginava que os antropólogos julgavam ter mantido o campo “cientificamente puro” com esse método, mas a pureza era tão constritiva que simplesmente tinha estrangulado o campo. Se não podemos estabelecer generalizações a partir de dados, de que nos servem eles? Uma ciência que não generaliza não é uma ciência. Imagine alguém dizendo a Einstein: — Olha, você não pode dizer que E = mc2. É genérico demais, redutivo demais. Queremos apenas os fatos da física, e não toda essa teoria bombástica. — Besteira. No entanto, é o que estavam dizendo em antropologia.
Dados sem generalização são balela. E à medida que Phaedrus prosseguia, parecia ser esse o status do que estava lendo. Enchiam-se prateleiras e prateleiras com volumes e volumes poeirentos sobre este e aquele selvagem mas, até onde se podia ver, a antropologia, a “ciência do homem”, não tinha tido praticamente nenhum efeito diretivo nas atividades humanas deste século científico.
Ciência de meia-tigela. Tentavam se erguer pelos cordões das botas. Não é possível que a caixa A contenha a caixa B que por seu turno contém a caixa A. Isso é tramóia. Contudo, eis uma “ciência” que contém o “homem” que contém a “ciência” que contém o “homem” que contém a “ciência”, e por aí indefinidamente.

(LILA - págs. 60 até 63).



F.C.S Northrop



O livro "The Meeting of East and West" do filósofo norte-americano muito respeitado por Bertrand Russell, que veio a influenciar bastante o começo das pesquisas de Robert Pirsig, durante sua viagem à Coréia do Sul.

"O livro de filosofia, chamado O encontro do Ocidente com o Oriente, de autoria de F.S.C. Northrop, defende a idéia de que o “contínuo estético indiferenciado”, do qual se origina o teórico, é mais conhecido.
O livro afirma que há na existência humana um componente teórico essencialmente ocidental (que corresponderia ao passado de laboratório de Fedro) e um componente estético, que se percebe de maneira mais forte no Oriente (que se relacionava ao passado coreano de Fedro), e esses componentes pareciam jamais se encontrar. 
Os termos “teórico” e “estético” correspondem ao que Fedro mais tarde chamou de modalidades clássica e romântica da realidade, e provavelmente influenciaram a criação destes termos muito mais do que Fedro poderia imaginar. A diferença é que a realidade clássica é essencialmente teórica, embora tenha uma estética própria, e a realidade romântica é essencialmente estética, embora tenha uma teoria própria. A divisão em teórico e estético ocorre dentro de cada modalidade. A divisão em clássico e romântico ocorre entre mundos separados. "

(ZAMM - pág.125)

























.