terça-feira, 3 de maio de 2011

Vernes Dussenberry e a MOQ

James Vernes Dussenberry




Antropólogo, arqueológo, professor e advogado dos direitos dos nativos americanos.
Foi um amigo muito próximo de Pirsig, no qual admirava seu diferencial em realmente entender com intimidade os nativos americanos. Aparece constantemente em ZAMM e Lila como introdutor de Pirsig em contato com os indígenas.

"O único assunto sobre o qual discorria com entusiasmo eram os índios, particularmente os índios algonquianos, os chippewa-crees, da fronteira com o Canadá, sobre os quais estava fazendo tese de doutorado em antropologia. Costumava deixar bem claro que, a não ser pelos índios, que tinha amparado durante vinte e um dos vinte e três anos de magistério, achava todos aqueles anos um desperdício de vida.
Ele era o orientador de todos os estudantes de origem indígena da faculdade, cargo que, até onde se sabia, nunca tinha sido de mais ninguém. Os estudantes eram um elo de conexão. Fazia questão de conhecer suas famílias e visitá-las e usar isso como via de acesso às suas vidas. Passava todos os fins de semana e férias que podia nas reservas, participando de suas cerimônias, levando recados, transportando as crianças doentes de carro para o hospital, falando com as autoridades quando eles se metiam em encrenca e, além disso, entregando-se completamente aos modos e traços de personalidade e segredos e mistérios desse povo que ele amava cem vezes mais do que o seu próprio.
Poucos anos após ter completado o doutorado, ele deixaria o Departamento de Inglês em caráter definitivo, passando a ensinar antropologia. Podia-se imaginar que essa seria uma boa solução para ele, mas pelo que Phaedrus ouvia dizer, tudo indicava que não ia ser. Ele não era um excêntrico apenas no campo da língua inglesa, mas um excêntrico em antropologia também.
Sua maior excentricidade parecia ser a recusa em aceitar a “objetividade” como um critério antropológico. Achava que a objetividade não tinha cabimento na condução da investigação antropológica.
Seria o mesmo que dizer que o Papa não tem cabimento na Igreja Católica. Na antropologia americana aquela era a pior apostasia possível, e Dusenberry foi rapidamente informado disso. Cada uma das universidades americanas nas quais tentou se inscrever para fazer estudos de pós-graduação o rejeitou. Mas, ao invés de modificar suas convicções, ele contornou todo o sistema universitário americano e chegou ao Professor Ake Hultkranz, de Uppsala, a mais antiga universidade sueca, e estava para receber seu título de doutor por lá. Toda vez que Dusenberry falava nisso, surgia em seu rosto um sorriso de gato-que-comeu-o-canário. Ura americano tirando o Ph.D. sobre índios americanos na Suécia? Era ridículo!
— O problema com a abordagem objetiva — dizia Dusenberry — é que a gente não aprende muita coisa desse jeito. ... O único jeito de descobrir coisas sobre os índios é se preocupando com eles, e conquistando seu afeto e respeito... aí eles fazem qualquer coisa por nós... Mas se a gente não fizer assim... — Ele sacudia a cabeça e seus pensamentos iam se dispersando.
— Já vi esses pesquisadores “objetivos” virem até as reservas — dizia ele — e não chegarem a lugar nenhum...
— Tem esse mito pseudocientífico de que quando a gente é “objetivo” a gente simplesmente desaparece da face da Terra e passa a ver tudo sem distorções, como realmente é, feito Deus no céu. Mas isso é besteira. Quando uma pessoa é objetiva, sua atitude é de afastamento. Fica com um ar distante, de pedra, no rosto.
— Os índios vêem isso. Vêem isso melhor do que a gente. E quando vêem isso, não gostam. Não sabem em que diabo de lugar aqueles antropólogos “objetivos” estão e isso faz com que fiquem desconfiados e então se fecham e não dizem nada...
— Ou só dizem bobagens... nas quais, é claro, um bando de antropólogos acredita, de início, porque foram obtidas de modo “objetivo”... e os índios ficam rindo deles pelas costas.
— Alguns desses antropólogos acabam virando figurões em seus departamentos — continuava Dusenberry — porque dominam aquele dialeto. Mas eles não sabem tanto das coisas quanto pensam. Sobretudo, não gostam das pessoas que dizem isso a eles... como eu... — Ele ria.
— Por isso é que não sou objetivo a respeito dos índios — dizia ele. — Acredito neles e eles em mim e essa é a diferença. Eles me disseram que tinham me contado coisas que nunca tinham contado a nenhum outro homem branco, porque sabiam que nunca as usaria contra eles. É uma forma completamente diferente de se relacionar com eles. Os índios primeiro, a antropologia depois...
— Isso me limita de várias maneiras. Há tantas coisas sobre as quais não posso falar. Mas é melhor saber muito e dizer pouco, acho eu, do que saber pouco e dizer muito... não concorda?
Como Phaedrus era novo no Departamento de Inglês, Du-senberry manifestou um interesse curioso por ele. Dusenberry sentia curiosidade por tudo, e à medida que ia conhecendo Phaedrus melhor essa curiosidade crescia. Para sua surpresa, eis ali alguém que parecia ainda mais alienado do que ele, alguém que tinha feito estudos de pós-graduação em filosofia hindu, em Benares, índia, que loucura, e sabia alguma coisa sobre diferenças culturais. E o que era mais importante, Phaedrus parecia ter uma mente bem analítica.
— Isso é o que eu não tenho — tinha dito Dusenberry.
— Sei coisas sobre esse povo que dariam volumes de texto, mas não sei como estruturá-las. Não tenho esse tipo de cabeça.
Por isso, sempre que podia despejava horas e horas de informação sobre os índios americanos nos ouvidos de Phaedrus, esperando obter dele uma estrutura geral, um quadro do que aquilo tudo queria dizer, em termos mais amplos. Phaedrus escutava, mas não tinha as respostas que ele queria.
Dusenberry se interessava principalmente pela religião indígena. Estava convicto de que ela explicava a lentidão do índio em se integrar à cultura branca circundante. Tinha observado que as tribos que tinham as práticas religiosas mais ferrenhas eram as mais “atrasadas”, segundo os padrões brancos, e queria que Phaedrus fornecesse suporte teórico para aquilo. Phaedrus achava que provavelmente Dusenberry estava correto, mas não conseguia pensar num suporte teórico e achava a tese, como um todo, um tanto acadêmica e chata. Passou-se mais de um ano sem que Dusenberry tentasse corrigir essa impressão. Limitou-se a continuar a alimentar Phaedrus de informação sobre os índios e a receber em troca a falta de idéias de Phaedrus.

Recordava-se da hostilidade e amargura de Dusenberry em relação à “antropologia objetiva”; mas na altura achava que Dusenberry era apenas um iconoclasta. Não era.
Uma refutação de seu livro pelos especialistas seria algo mais ou menos assim:
Uma tese deste tipo é pitoresca e interessante, mas não pode ser considerada útil à antropologia, sem um suporte empírico. A antropologia busca ser uma ciência do homem, não uma coleção de fuxicos e intuições sobre o homem. Não se trata de antropologia quando alguém sem qualquer treinamento ou experiência passa uma noite numa reserva, numa tenda cheia de índios, tomando uma droga alucinógena. Quem pretende dessa forma ter descoberto algo que não foi percebido por centenas de pesquisadores metódicos e cuidadosamente preparados, que passaram toda uma vida no campo, exibe uma “super-confiança” que a disciplina da antropologia procura restringir.
Deve-se mencionar que este tipo de tese não é absolutamente incomum em antropologia. Na verdade, nos primórdios da história da antropologia, teses assim dominavam o campo. Foi somente no início deste século que Franz Boas e seus colaboradores começaram a perguntar, com seriedade: — O que deste material é ciência e o que não é? — Toda a bobajada especulativa e intuitiva, não corroborada por fatos reais, foi metodicamente extirpada do campo. Todo antropólogo, cedo ou tarde, chega a teses especulativas sobre as culturas que está estudando. Faz parte do fascínio que o mantém interessado no campo. Mas todo antropólogo é treinado para não se permitir divulgar essas teses até se sentir seguro, após o estudo de fatos e provas, de que sabe do que está falando.

(LILA; págs. 47 até 57)

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