terça-feira, 3 de maio de 2011

Henri Poincaré e a MOQ

Henri Poincaré



Henri Poincaré foi um matemático, físico, astrônomo e filósofo francês que teve como principal aluno Bertrand Russell. Suas conclusões científicas foram primordiais para Robert Pirsig:

" Ao contrário de Fedro, esse homem, já aos 35 anos, era conhecido internacionalmente, e aos 58 era um verdadeiro monstro sagrado, a que Bertrand Russell se referia como “por unanimidade, o homem de ciência mais importante da sua geração”. Ele era, ao mesmo tempo, astrônomo, físico, matemático e filósofo. Seu nome: Jules Henri Poincaré.

Sempre me pareceu inacreditável a idéia de que Fedro tivesse enveredado por mares nunca dantes navegados. Alguém, em algum lugar, devia ter tido todas aquelas idéias antes, e a mediocridade acadêmica de Fedro era tamanha, que fazia bem o estilo dele reproduzir os conceitos elementares de algum famoso sistema filosófico que ele não se dera ao trabalho de examinar. Por isso, levei mais de um ano lendo a longuíssima e, por vezes, chatíssima história da filosofia, em busca de idéias repetidas.
No entanto, foi fascinante ler a história da filosofia dessa maneira, e me ocorreu um pensamento do qual ainda não sei bem o que fazer. Os sistemas filosóficos que supostamente deveriam diferir bastante uns dos outros, em geral dizem coisas muito semelhantes ao que Fedro pensava, com variações mínimas. Muitas vezes pensei ter encontrado o homem que ele havia plagiado, mas sempre surgiam certas diferenças sutis que mostravam que ele seguia um caminho completamente oposto. Hegel, por exemplo, a quem já me 
referi, rejeitava os sistemas filosóficos do Oriente, considerando-os anti-filosóficos. Fedro, ao, contrário, aparentemente os assimilou, ou deixou-se assimilar por eles. Não sentia nisso nenhuma contradição.


Até que cheguei a Poincaré. Aqui, não havia quase nada em comum, mas aconteceu uma coisa diferente. Fedro sobe com a maior dificuldade, seguindo por trilhas tortuosas, para atingir as mais altas abstrações, depois prepara-se para descer e, de repente, estanca. Poincaré parte das verdades científicas mais básicas, sobe até as mesmas abstrações e depois pára. As extremidades das duas trilhas se encaixam perfeitamente! Há entre elas uma total continuidade. Quando se vive nas trevas da loucura, o surgimento de outro alguém que pensa e fala como nós é quase uma graça divina. Sentimo-nos como Robinson Crusoé ao encontrar na areia as pegadas do índio Sexta-Feira.

Poincaré viveu de 1854 a 1912. Lecionava na Universidade de Paris. Pela barba e pelo pincenê fazia lembrar Henri ToulouseLautrec, que era seu contemporâneo, morava em Paris e era apenas dez anos mais jovem do que ele. Na época de Poincaré, surgiu uma profunda crise que abalou os alicerces das ciências exatas. Durante anos a verdade científica fora colocada acima de qualquer dúvida, a lógica da ciência era infalível, e se às vezes os cientistas se enganavam, era apenas porque não compreendiam as leis da ciência. Todas as grandes perguntas já haviam sido respondidas. Agora tudo que a ciência tinha a fazer era aperfeiçoar as respostas, para chegar a uma maior exatidão. É verdade que havia ainda fenômenos inexplicados, como a radioatividade, a transmissão da luz através do “éter” e a curiosa relação entre as forças magnéticas e a eletricidade. Mas no final, de acordo com os rumos da ciência no passado, tais enigmas acabariam sendo resolvidos. Quase ninguém previa que dentro de apenas algumas décadas não haveria mais espaço absoluto, tempo absoluto, substância absoluta, nem grandezas absolutas; que aquela física clássica, refúgio milenar da ciência, se tornaria apenas “aproximativa”; que os astrônomos mais sérios e respeitáveis diriam que se a humanidade olhasse durante bastante tempo através de um telescópio bastante poderoso, só conseguiria enxergar sua própria nuca!
O fundamento daquela revolucionária Teoria da Relatividade ainda era conhecido por poucas pessoas, dentre as quais se incluía Poincaré, um dos mais eminentes matemáticos da época. Em sua obra Os Fundamentos da Ciência, Poincaré disse que os antecedentes da crise da ciência remontavam a eras esquecidas. Há muito tempo se tentava em vão demonstrar o axioma conhecido como o quinto postulado de Euclides. Foi essa tentativa de demonstração que deu início à crise. O postulado euclidiano das paralelas, segundo o qual através de um dado ponto passa apenas uma linha paralela a uma reta dada, é aquele que aprendemos na geometria do ginásio. É uma das pedras fundamentais, a partir da qual se construiu todo o cálculo geométrico.
Todos os outros axiomas pareciam tão óbvios que chegavam a ser inquestionáveis: mas este, não. Entretanto, não se poderia destruí-lo sem destruir também grande parte da matemática, e não aparecia ninguém que fosse capaz de reduzi-lo a formas mais elementares. Diz Poincaré que nem se pode imaginar quanta energia se desperdiçou em busca dessa quimera. Mas finalmente, no primeiro quartel do século XIX, e quase simultaneamente, um húngaro e um russo ─ Bolyiai e Lobachevski─ conseguiram estabelecer de forma irrefutável que é impossível provar o quinto postulado euclidiano. Partiram do seguinte raciocí

nio: caso houvesse alguma maneira de reduzir o postulado a axiomas menores e mais definidos, ocorreria um outro fenômeno ─ a inversão do postulado de Euclides geraria contradições lógicas na geometria. Resolveram, então, invertê-lo, para ver no que dava. Lobachevski parte do pressuposto de que através de um ponto podem passar duas linhas paralelas a uma reta dada. E põe de lado todos os outros axiomas. A partir destas hipóteses, ele deduz uma série de teoremas, nos quais não se encontra nenhuma contradição, e acaba construindo uma geometria de lógica tão impecável quanto a da geometria euclidiana. Assim, por não haver encontrado contradições, ele provou que o quinto postulado não podia ser reduzido a axiomas mais 
simples. Não foi essa prova que assustou a todos. Foi o seu conseqüente lógico, que logo a eclipsou, assim como a quase todo o resto do campo da matemática. A matemática, pedra angular da certeza científica, de repente deixara de ser absoluta.



Havia agora duas visões contraditórias cuja autenticidade científica era inabalável. Eram verdadeiras para homens de todas as épocas, independentemente de preferências individuais.
Foi esta a origem da profunda crise que abalou a acomodação científica da Idade de Ouro. Como saber qual das duas geometrias era a verdadeira? Não havendo base para distingui-las uma da outra, haveria uma única matemática, que admitia contradições lógicas. Mas uma matemática que admite contradições lógicas internas não é mais matemática. O efeito final das geometrias nãoeuclidianas passa a ser uma simples pantomima de mágico, em que as idéias são sustentadas apenas pela fé.
E naturalmente, uma vez aberta esta porta, o número de sistemas contraditórios de verdades científicas inabaláveis fatalmente aumentaria. Um alemão chamado Riemann apresentou outro sistema impecável de geometria, que elimina não só o postulado de Euclides, como também o primeiro axioma, segundo o qual apenas uma reta pode passar por dois pontos. Este sistema não apresentava qualquer contradição lógica interna; era apenas incompatível com as geometrias de Euclides e Lobachevski.
Segundo a Teoria da Relatividade, a geometria de Riemann é a que melhor descreve o nosso mundo. 

Para resolver o problema do que seja a verdade matemática, segundo Poincaré, era necessário primeiro determinar a natureza dos axiomas geométricos. Seriam eles julgamentos sintéticos e apriorísticos, conforme dizia Kant. Ou seja, fariam parte da consciência humana, sem se relacionarem com a experiência, nem terem 

sido criados a partir dela? Poincaré achava que não. Se assim fosse, eles se imporiam a nós com uma força tal, que não conseguiríamos conceber a proposição contrária, nem construir uma estrutura teórica. Não existiriam geometrias não-euclidianas. Deveríamos, portanto, concluir que os axiomas da geometria são verdades experimentais? Poincaré também não acreditava nisso. Se tal fosse o caso, eles estariam sujeitos a contínuas mudanças e revisões, à medida que fossem surgindo novos dados experimentais. Tal idéia parece opor-se à própria natureza da geometria. Poincaré concluiu que os axiomas da geometria são convenções; uma escolha feita entre todas as convenções possíveis é orientada pelos dados experimentais, mas permanece livre, sendo limitada apenas pela necessidade de evitar qualquer contradição.


Eis por que os postulados podem conservar toda a sua carga de veracidade, mesmo que as leis experimentais que determinaram sua adoção sejam apenas aproximativas. Em outras palavras, os axiomas geométricos são apenas definições disfarçadas. Tendo identificado a natureza dos axiomas geométricos, ele 
passou a considerar outra questão: qual é a geometria verdadeira, a de Riemann ou a de Euclides?

A resposta foi que tal pergunta não tinha cabimento. Era o mesmo que perguntar se o sistema métrico era verdadeiro, e o sistema avoir-dupois, falso; se as coordenadas cartesianas eram verdadeiras, e as polares, falsas. Uma geometria não pode ser mais verdadeira do que a outra; pode ser mais conveniente. A geometria 
não é verdadeira; é vantajosa.

Poincaré procurou então demonstrar a natureza convencional de outros conceitos científicos, tais como espaço e tempo, fazendo ver que não há maneira mais, ou menos, verdadeira de determinar essas entidades. A maneira geralmente adotada é apenas a mais conveniente.
Nossos conceitos de espaço e tempo também são definições, escolhidas com base na sua conveniência, em termos da manipulação dos fatos.
Entretanto, essa concepção radical dos nossos mais básicos  conceitos científicos ainda não está completa; o mistério em torno do que sejam espaço e tempo poderá ser melhor compreendido através dessa explicação, mas agora são os “fatos” que sustentam a ordem do universo. Que são os fatos?
Poincaré dispôs-se a fazer um exame crítico do assunto. Quais os fatos a serem observados? Uma infinidade. A observação indiscriminada dos fatos tem tanta probabilidade de produzir ciência quanto tem um macaco de, sentado a uma máquina, datilografar o Pai-nosso.
O mesmo ocorre com as hipóteses. Que hipóteses? Poincaré dizia: “Um fenômeno que admita uma explicação mecânica exaustiva, admitirá também uma infinidade de outras explicações, que serão igualmente perfeitas para todas as peculiaridades descobertas experimentalmente.” Foi isso o que Fedro descobriu no laboratório; foi isso que levantou a questão que causou sua reprovação na universidade.
Dispondo o cientista de um tempo infinito, segundo Poincaré, seria necessário apenas dizer a ele: “Observe com toda a cautela”; mas como o cientista não tem tempo para observar tudo, e é melhor não observar do que observar da maneira errada, é necessário que ele faça uma escolha.
Poincaré criou algumas regras: existe uma hierarquia dos fatos. Quanto mais geral for um fato, mais valor terá. Aqueles que acontecem com maior freqüência são melhores do que os que raramente acontecem. Por exemplo, os biólogos jamais conseguiriam construir uma ciência se só existissem indivíduos, e não espécies, 
e se a hereditariedade não fizesse com que os filhos se parecessem com os pais.

Quais são os fatos que têm mais probabilidade de tornarem a acontecer? Os fatos simples. Como reconhecê-los? Escolha-se aqueles que pareçam simples. Das duas, uma: ou a simplicidade deles é genuína, ou os elementos complexos não são distinguíveis. No primeiro caso, certamente encontraremos esse fato simples outra vez, isolado ou funcionando como elemento de um fato complexo. O segundo caso também tem grande possibilidade de se repetir, porque a natureza não dá origem a esses casos assim à toa.
Onde está o fato simples? Os cientistas o procuraram nos dois extremos, no infinitamente grande e no infinitamente pequeno. Por exemplo, os biólogos instintivamente foram levados a considerar a célula mais interessante do que o animal inteiro; e, desde a época de Poincaré, a molécula protéica é mais interessante do que a célula. Os resultados comprovam a eficácia de tal procedimento, uma vez que as células e moléculas de organismos diferentes provaram ser mais semelhantes entre si do que os próprios organismos.
Como, pois, escolher o fato interessante, aquele que está incessantemente acontecendo? O método consiste precisamente nessa escolha dos fatos; portanto, o primeiro passo deve ser a criação de um método. E muitos já foram idealizados, porque nenhum é absoluto. É mais prudente começar com fatos corriqueiros, mas após o estabelecimento de uma regra comprovada, os fatos que se adequarem a ela ficarão sem sentido, porque já não transmitirão nenhum conhecimento novo. Aí a exceção é que se torna importante. Nós não buscamos as semelhanças, mas sim as diferenças mais acentuadas, por serem as mais gritantes, e também as mais instrutivas. Primeiro, buscamos os casos em que esta regra tem mais probabilidade de falhar. Distanciando-nos bastante no espaço e no tempo, poderemos descobrir que nossas regras normais foram completamente subvertidas. E essas grandes reviravoltas nos permitem enxergar as pequenas mudanças que podem ocorrer mais perto de nós. Aquilo a que deveríamos visar, porém, não é tanto a determinação de semelhanças e diferenças, mas sim a detecção de semelhanças ocultas sob aparentes divergências. A primeira vista, as regras individuais parecem ser discordantes, mas se as examinarmos com atenção, constataremos que em geral elas se parecem; são diferentes na substância, mas semelhantes na forma, na ordenação de suas partes. Ao encará-las sob esse prisma, teremos a surpresa de vê-las aumentarem e abrangerem o todo. E é nisto que 
consiste o valor de certos fatos que vêm completar a montagem de uma estrutura e mostrar que ela é a imagem fiel de outras estruturas conhecidas.

Não, concluiu Poincaré, o cientista não escolhe ao acaso os fatos a observar. Procura condensar bastante experiência e bastante reflexão num volume fino, e é por isso que qualquer livrinho de física contém tantas experiências passadas e mil vezes mais experiências possíveis, com resultados previstos.

Depois, Poincaré exemplificou o processo de descoberta do fato. Ele havia feito uma descrição geral do processo de descoberta do fato e das teorias, mas agora ia proceder a uma pequena incursão no universo de suas experiências pessoais, falando sobre as funções matemáticas que o haviam tornado famoso.
Ele tinha passado quinze dias tentando provar que tais funções não poderiam existir. Todos os dias sentava-se à secretária, passando uma hora ou duas a experimentar um grande número de combinações, sem obter qualquer resultado. Certa noite, porém, contrariando seus hábitos, tomou uma xícara de café puro, e teve insônia. As idéias acorreram aos borbotões. Poincaré sentiu que elas se encontravam e se combinavam 
aos pares estabelecendo, por assim dizer, uma configuração estável.

Na manhã seguinte, ele só teve que anotar os resultados. O acontecido fora uma verdadeira onda de cristalização. Uma onda posterior, gerada pelas analogias com a matemática tradicional, produziu o que ele mais tarde denominou “Séries Teta-Fuchsianas”. Ele ia tomar parte numa excursão geológica que partiria de Caen, cidade onde morava. As viagens sempre o faziam esquecer da matemática. No momento em que ia pôr o pé no degrau do ônibus, ocorreu-lhe a idéia, de maneira nenhuma preparada pelo que andara pensando anteriormente, de que as transformações por ele utilizadas para definir as funções fuchsianas eram
idênticas às da geometria não-euclidiana. Sem investigar essa hipótese, ele continuou tranqüilamente conversando enquanto viajava; sentia, porém, uma convicção esmagadora. Mais tarde, com calma, verificou os resultados.
Noutra ocasião, passava perto de um penhasco à beira-mar, quando fez nova descoberta, a qual se introduziu com a mesma brevidade, brusquidão e certeza imediata que a primeira. Outra ainda ocorreu enquanto ele passeava pelas ruas. Tal sistema foi elogiado; dizia-se que eram as misteriosas elaborações do gênio.

Mas Poincaré não se contentou com essa explicação tão superficial. Tentou investigar mais a fundo o que havia acontecido.
A matemática para ele não era apenas uma questão de aplicar regras, não se restringia à ciência. Não buscava só estabelecer o maior número possível de combinações de acordo com certas leis fixas. As combinações daí resultantes seriam excessivamente numerosas, inúteis e incômodas. O verdadeiro trabalho do inventor consiste em selecionar essas combinações, de modo a eliminar as que são inúteis, ou melhor, evitar a preocupação de elaborá-las, e as regras que orientam tal seleção são extremamente sutis e delicadas. E quase impossível formulá-las com precisão; elas devem ser pressentidas, não formuladas. Poincaré, pois, levantou a hipótese de que essa seleção é feita  através do que ele denominou “consciência subliminar”, uma entidade que corresponde exatamente ao que Fedro chamava consciência pré-intelectual. A consciência subliminar, para Poincaré, observa uma ampla gama de soluções para um certo problema, mas só permite que cheguem ao consciente as soluções interessantes. As soluções matemáticas são selecionadas pela consciência subliminar com base na “beleza matemática”, na harmonia dos números e formas, na elegância geométrica. “Este é um genuíno sentimento estético, conhecido de todos os matemáticos”, dizia Poincaré, “que, porém, os leigos nunca experimentaram, e que muitas vezes são tentados a ridicularizar.” E, no entanto, é essa harmonia, essa beleza, que está no centro de tudo.
Poincaré fez questão de esclarecer que não se estava referindo à beleza romântica, à beleza das aparências que ferem os sentidos. Ele se referia à beleza clássica, que provém da harmonia na organização das partes, e que pode ser captada por uma inteligência pura, dando corpo à beleza romântica, sem a qual a vida seria obscura e efêmera, um sonho do qual não se poderia distinguir os sonhos de cada um, por que não haveria base para estabelecer tal diferença.

É a busca dessa beleza clássica especial, o sentido da harmonia do cosmos que nos faz escolher os fatos que melhor contribuam para essa harmonia. Não são os fatos que geram a harmonia universal, a única realidade objetiva, mas a relação entre as coisas. O que garante a objetividade do mundo em que vivemos é o fato de que este mundo é comum a nós e aos outros seres pensantes. Ao nos comunicarmos com os outros homens, recebemos deles raciocínios harmoniosos já consagrados. Sabemos que tais raciocínios não partem de nós, e, ao mesmo tempo, reconhecemos neles, por causa da harmonia, o trabalho de seres racionais como nós. E 
na medida em que tais raciocínios pareçam adequar-se ao mundo conforme o percebemos, poderemos inferir que tais seres racionais viram o mesmo que nós; eis por que sabemos que não estivemos sonhando. É exclusivamente essa harmonia, essa Qualidade, se preferirem, que constitui a base da única realidade que poderemos conhecer.


Os contemporâneos de Poincaré recusavam-se a admitir que os fatos são pré-selecionados porque acreditavam que tal seleção destruiria a validade do método científico. Presumiam que os “fatos pré-selecionados” significavam que a verdade era uma questão de “gosto”, e tacharam as idéias de Poincaré de convencionalistas. Rejeitavam energicamente o fato de que o seu próprio “princípio de objetividade” não era em si um fato observável ─ e, portanto, segundo os seus próprios padrões, deveria ser inutilizado.
Eles achavam que deviam reagir assim porque senão todo o fundamento filosófico da ciência iria por água abaixo. Poincaré não forneceu quaisquer soluções para esse dilema. Não penetrou o suficiente nas implicações metafísicas daquilo que estava dizendo, para obter uma solução. Deixou de dizer que a seleção dos fatos, antes de serem “observados”, é uma questão de gosto apenas num sistema metafísico dualista, envolvendo só sujeito e objeto! Quando a Qualidade entra em cena, como uma terceira entidade metafísica, 
a pré-seleção dos fatos deixa de ser arbitrária. Ela não se baseia em opiniões subjetivas e caprichosas, mas na Qualidade, na realidade em si. 

Isso dá cabo do dilema.

Era como se Fedro tentasse montar um quebra-cabeça e, por falta de tempo, houvesse deixado um lado inteiro por terminar. Poincaré procurou montar o quebra-cabeça dele, também: sua idéia de que o cientista seleciona os fatos, hipóteses e axiomas com base na harmonia também deixava um lado do quebra-cabeça 
por completar. Deixar no mundo científico a impressão de que a fonte de toda a realidade científica é apenas uma harmonia subjetiva e caprichosa é resolver problemas epistemológicos deixando uma bainha desfeita na fronteira com a metafísica, que torna a epistemologia inaceitável.

Mas sabemos, a partir da metafísica de Fedro, que a harmonia a que Poincaré se referia não é subjetiva. É a fonte dos sujeitos e objetos, e existe numa relação anterior a eles. Não é caprichosa, é a força que se opõe à inconstância; o princípio organizador de todo o pensamento científico e matemático, que destrói a inconstância e sem o qual nenhum pensamento científico pode avançar.
Emocionou-se muito ao descobrir que essas bordas inacabadas se encaixavam perfeitamente uma na outra, numa harmonia a que tanto Fedro quanto Poincaré se referiam, produzindo uma estrutura de pensamento completa, capaz de unir as linguagens isoladas da Arte e da Ciência numa única linguagem." 

(ZAMM; págs. 261 até 270)

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